AS JOVENS DA PÓS-MODERNIDADE: contribuições do existencialismo de Simone de Beauvoir
As jovens na pós-modernidade são desafiadas a construir sua própria identidade em um mundo de constantes transformações. A partir do existencialismo de Simone de Beauvoir, este artigo discute a liberdade feminina, a crise de identidade e o impacto das mudanças sociais e familiares na adolescência, revelando como a escolha e a responsabilidade moldam a existência.
PSICOLOGIA EXISTENCIALSIMONE DE BEAUVOIRJEAN-PAUL SARTREO SEGUNDO SEXOADOLESCÊNCIA E IDENTIDADECRISE DE IDENTIDADEMULHER NA PÓS-MODERNIDADE
Por Flávio Sousa
5/7/20236 min ler


"NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher." SIMONE DE BEAUVOIR
Assim inicia sua análise existencial do feminismo a “rainha do existencialismo” Simone de Beauvoir. Embora rejeitasse o título de feminista, por não pregar oposição ao machismo e sim, a reivindicação da mulher por seu lugar em sociedade, antes compreendido culturalmente como inferior, ela é considerada um ícone de peso quando abordamos essa temática. Em seu clássico “O segundo sexo”, Simone ergue a bandeira que sinaliza a independência feminina, afirmando que com esforços a mulher conseguiu “viver integralmente sua condição de ser humano” (BEAUVOIR). Realidade impensável antes da pós-modernidade.
A partir da ótica existencialista dentro da perspectiva adolescente, que características podemos discutir levando em consideração o advento feminino no ambiente familiar e social? O primeiro ponto que devemos destacar é que, como afirma Sartre, assim como o homem vive a sociedade a seu modo, ele interfere na mesma também a seu modo. Isso indica que, senão por meios de questões, autonomia e ações reacionárias, a mulher teria que aguardar muito até conseguir sua posição atual. Trabalhos como os da filósofa Simone de Beauvoir e da escritora Clarice Lispector tiveram papéis importantíssimos na construção desse advento. Marcaram o século passado e garantem sua relevância no nosso século XXI.
Outro fator importante de ser pontuado, é a noção de liberdade vivenciada pelo universo feminino que propiciou uma nova forma de ser, autenticando sua vida e sua identidade.
É compreensível que o ponto de partida, destarte primordial para que à sua maneira a mulher se torne quem é, quem escolheu ser, é a sua existência. Beauvior observou os sinais que se apresentavam no início do século XX e procurou estudá-los, identificá-los e compreendê-los, resultando em sua obra. Dessa maneira se encontra preservada a máxima sartreana que diz: “a existência precede a essência”. Pois o “torna-se mulher” que a autora escreveu, dá ao existente a liberdade de se escolher tal como se é, tal como se quer, e, fazer disso o seu sentido. É a maneira pela qual o feminismo ganha protagonismo em nosso século que dá à mulher, a partir de seus estados carregados de um pathos existencial, muitas possibilidades de escolhas, de estilos, de existência.
Como vemos, foi a luta pelo direito de ser quem é, não que trouxe, mas que deu ao feminismo propriedade para produzir sua atual condição, principalmente participante e atuante em sociedade. Embora essa realidade ainda seja rejeitada em alguns contextos, suas conquistas são incontestáveis. Às famílias mais conservadoras, restam aprender a lidar com seus jovens imersos nesta atmosfera de transformações contínuas. Aliás, o próprio conceito de família, de lambuja, também tem se modificado, motivo? o declínio de uma força que estabeleceu resistências, outrora, contra toda manifestação contrária, o patriarcalismo. A pós-modernidade, filha do patriarcado, cumpre seu trajeto explorando o devir, produzindo e identificando-se (ora sim, ora não) com sua própria criação; esbarra a todo o momento na responsabilidade a que se encontra condenada, que de acordo com Sartre, é a de ser livre. Isso resulta em alguns sintomas, mas, a propósito, a pós-modernidade por si não seria um sintoma? Um traço marcante na contemporaneidade é analisado por Diego Fascina e Rosi Sena, em concordância com Bauman, como sendo a chamada “crise de identidade”:
"(...) é uma característica de nossa época, cunhada por ele [Bauman] como líquido-moderna, essa repartição em fragmentos mal coordenados, pois as sociedades modernas não são caracterizadas apenas por romperem com toda e qualquer condição precedente, passam também, por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior." DIEGO FASCINA; ROSI SENA
Desse modo, essa era expressa algo totalmente novo, onde viver é um desafio constante. Sem ter a quem recorrer, sem ter uma natureza que o defina, o ser é lançado no mundo destinado a construir-se.
Essa construção contínua enfrenta fases e uma das mais conturbadas é a adolescência. A adolescência tem como característica o defrontamento súbito da noção de liberdade (às vezes privada) com responsabilidade. O adolescente se depara, de forma súbita, com a sensação de poder e o sentimento de liberdade, antes desejado e sonhado, mas agora real, atrelado à responsabilidade que o atormenta, eis o motivo de sua angústia. Desse modo, o jovem agirá como porta-voz de sua sociedade. O adolescente fala o que a sociedade cala.
"A nossa sociedade pode ser considerada produto de um processo socioeconômico-político-cultural que se tem caracterizado pela individualidade e pelo racionalismo. Nesse panorama o outro deixa de fazer questão, o que importa é o imediatismo. Os lugares já não estão mais postos, hoje o lugar na sociedade deve ser conquistado, o que piora na idade adolescente, pois o mesmo se encontra “perdido” e desprovido de um lugar." CASSIA TEIXEIRA
Acreditamos que o fato de estarem “perdidos”, que nos faz lembrar a “crise de identidade” acima descrita, não se trata de um problema que piora na adolescência e que, por isso, precisa ser solucionado com lugares pré-estabelecidos, portanto, previamente compreendidos em sociedade. Um olhar mais atento nos ensina a compreender o quão característico e emblemático é o que poderíamos chamar de não-lugar do adolescente, e, consequentemente perceberemos também que este lugar nunca existiu, o que torna possível acreditar que justamente por isso eles flutuam sem apoio, identificando-se e experimentando-se na busca desse lugar ou na tentativa de criá-lo.
Entendemos por ingenuidade, acreditar que se faça necessário um trabalho na sociedade visando a transformação da mesma no sentido de produzir um lugar para os adolescentes, onde na verdade vivem ao mesmo tempo vários lugares de forma experimental. Isso porque o próprio conceito de adolescência é algo novo, surgido no Ocidente ao final do século XIX. O incentivo com propósito de impulsionar o sujeito em direção propriamente à luta por seu espaço, por meio, sim, de suas próprias conquistas, dará aos mesmos melhores condições de sobrevivência e bem-estar em quaisquer que sejam os contextos.
Sobretudo o contexto familiar, quando tratamos da adolescência, é fundamental para compreendermos a origem de nossos jovens.
"A FAMÍLIA não é uma comunidade fechada em si mesma: para além de sua separação ela estabelece comunicações com outras células sociais; o lar não é apenas "um interior" em que se confina o casal." SIMONE DE BEAUVOIR
E não é mesmo.
A pós-modernidade, além de trazer consigo a individualidade, também permite novas conexões interpessoais que contribuem na estrutura social, consequentemente na formação da família. Nesse aspecto o “BUM” tecnológico fala por si. Ademais, presenciamos a instituição familiar ganhar novas configurações. A grande conquista galgada por aqueles que sonhavam ter uma família e eram impedidos por ares patriarcais que outrora sopravam contra sua direção, é relatada nas próximas palavras:
"Sendo incapaz de dissimular para seus filhos as condições biológicas de sua geração, os pais homossexuais, por sua própria existência, incitavam a abertura do debate sobre a questão das origens. Entretanto, e mesmo que a família estivesse se modificando, transgrediam urna ordem procriadora que havia repousado por dois mil anos no princípio do logos separador e da diferença sexual. Pois a instituição familiar não podia, nessa época, escapar a seu princípio fundador: o acasalamento carnal entre um homem e uma mulher. Sob este aspecto, a invenção da família dita "homoparental" arriscava reavivar o grande terror de uma possível supressão da diferença sexual." ROUDINESCO
O logos separador em favor da família tradicionalmente acatada por dois milênios cedeu diante do pathos da liberdade. Compreendemos que ao escolher uma posição, o individuo a escolherá para o mundo. Pois seu posicionamento diante do mundo é a sua contribuição para o mesmo.
"Assim, sou responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem que escolho ser; ao escolher a mim, escolho o homem." SARTRE
Eis a confirmação da responsabilidade humana no ambiente social.
Igualmente, por intermédio das escolhas e posicionamentos, com um toque feminino, cada vez com mais orgulho, coragem de lançar-se ao devir e enfrentar a misoginia e o machismo, Beauvoir transparece nas palavras a seguir o entusiasmo de ser mulher livre:
"Hoje, mais do que outrora, a mulher conhece a alegria de modelar o corpo pelos esportes, a ginástica, os banhos, as massagens, os regimes; ela decide de seu peso, de sua linha, da cor de sua pele; a estética moderna permite-lhe integrar qualidades ativas em sua beleza: tem o direito a músculos exercitados, impede a invasão da gordura; na cultura física ela se afirma como uma pessoa; há, para ela, uma espécie de libertação." SIMONE DE BEAUVOIR
É exatamente essa liberdade que presenciamos hoje em nossas adolescentes, e, ainda munidas de perfis em redes sociais, onde se escolhem de várias formas e são, do mesmo modo, responsáveis por aquilo que escolheram ser, doando-se como exemplo e como modelo ao mundo.
Comparação entre nosso tempo e outras épocas são possíveis e sempre serão. Mas é preciso cuidado para que as analogias não sirvam de motivação a cultos de épocas precedentes. Assim torna-se relevante o acompanhamento e análise aprofundada nas questões que têm desencadeado as mudanças cada vez mais rápidas e frequentes que presenciamos. Pois a mudança é fundamental para o desenvolvimento. Os estudos nos temas que se referem principalmente a novas configurações sejam elas familiares e sociais, além das mais variadas formas de existir que alguém manifeste, terá como propósito a compreensão dos motivos que incidem nessas mudanças, permitindo melhores alternativas quando pensamos, principalmente, na clínica psicológica.